sexta-feira, 8 de julho de 2011

WOODY ALLEN – Cuca Fundida ( 1971)


Estou postando aqui no Blog o ótimo livro de autoria de Woody Allen, o Cuca Fundida, lançado originalmente em 1971. Darei destaque ao conto, O Cara, que acho um dos melhores do livro e logo abaixo estarei disponibilizando todo o livro em PDF, abraço, e fica com woody! Dedico essa postagem a minha simpática amiga, filósofa Fernanda!


O Cara

Eu estava tranqüilamente em meu escritório, limpando os restos de pólvora do meu 38, e imaginando qual seria o meu próximo caso. Gosto muito dessa profissão de detetive particular e, embora ela me obrigue de vez em quando a ter as gengivas massageadas com um macaco de automóvel, o aroma das abobrinhas até que faz a coisa valer a pena. Sem falar nas mulheres, nas quais não costumo pensar muito, exceto quando estou respirando. Assim, quando a porta do meu escritório se abriu e uma loura de cabelos compridos, chamada Heather Butkiss, entrou rebolando e dizendo que posava para determinadas revistas e que precisava de minha ajuda, minhas glândulas salivares passaram uma terceira e aceleraram. Estava de minissaia e usava uma camiseta justa, tinha mais curva do que uma tabela estatística e seria capaz de provocar uma parada cardíaca até num caribu.
“O que quer que eu faca, meu bem?” – perguntei logo, para não criar maiores intimidades.
“Quero que encontre uma pessoa.”
“Uma pessoa desaparecida? Já tentou a polícia?”
“Não exatamente, Sr. Lupowitz.”
“Pode me chamar de Kaiser, meu bem. OK, quem e o cara?”
“Deus.”
“Deus?”
“Isso mesmo. Deus. O Criador, o Princípio de Todas as Coisas, o
Onisciente, Onipresente e Onipotente. Quero que O encontre para mim.”
Olhem, já tive alguns malucos no escritório antes, mas, com uma forma física daquelas, você é obrigado a ouvir.
“Por que quer que eu te encontre Deus?”
“Isso é da minha conta, Kaiser. Só quero que O encontre.”
“Olhe, meu bem, acho que você procurou o detetive errado.”
“Porquê?”
“A menus que você me dê os dados.”
“Está bem, eu dou”, ela respondeu, mordiscando ligeiramente o lábio inferior e levantando a saia para ajustar as meias, lá no alto das coxas, só porque viu que eu estava olhando. Naturalmente, fiz de conta que não vi.
“Vamos jogar limpo, meu bem” – eu disse, implacável.
“Bem, a verdade é – eu não poso para revista nenhuma.”
“Não?”
“Não. Nem meu nome é Heather Butkiss. Chamo-me Claire Rosensweig e sou estudante de filosofia. História do Pensamento Ocidental, você sabe. Tenho que entregar minha tese até janeiro. Sobre a religião ocidental. Todos os meus colegas estão preparando teses especulativas. Mas, na minha, quero ter certeza. O Professor Grebanier disse que se alguém provar alguma coisa, ganhará nota máxima. E papai disse que me daria um Mercedes se eu conseguisse.”

Abri um maço de Lucky Strike e um pacotinho de chicletes e enfiei um de cada na boca. A história dela estava começando a me interessar. Intelectualóide mimada. Corpo nota 10: e um QI que eu gostaria de conhecer melhor.
“Pode me dar uma descrição de Deus?”
“Nunca O vi.”
“Então como sabe que Ele existe?”
“Isso compete a você descobrir.”
“Oh, que ótimo! Quer dizer que você não sabe como e a cara Dele e nem
por onde devo começar?”
“Para dizer a verdade, não, Embora eu suspeite que Ele esteja em toda parte. No ar, nas flores, em você, em mim – talvez até nesta cadeira.”
“Estou entendendo,” Ela era panteísta. Tomei nota mentalmente daquilo e prometi que iria dar uma espiada por aí – por 100 dólares ao dia, mais as despesas e um convite para jantar. Ela sorriu e disse tudo bem. Descemos juntos pelo elevador. Estava ficando escuro lá fora. Podia ser que Deus existisse, mas o certo é que havia naquela cidade um bando de caras que iriam tentar me impedir de encontrá-lo.
Minha primeira pista era o Rabino Itzhak Wiseman, que há tempos me devia um favor por eu ter descoberto quem estava esfregando carne de porco em seu chapéu. Desconfiei de que havia algum perigo iminente, porque ele estava apavorado quando o procurei.
“É claro que este de quem você está falando existe, mas não posso nem dizer seu nome, senão Ele me fulmina com um raio. Não consigo entender por que alguns são tão sensíveis quanto a um simples nome.”
“Já O viu alguma vez?”
“Se eu O vi? Você deve estar maluco. Posso me dar por feliz quando consigo ver meus netos.”
“Então como sabe que Ele existe?”
“Que pergunta mais cretina! Como eu poderia usar um terno caro como esse se Ele não existisse? Olhe aqui, sinta o tecido. Caríssimo! Como posso duvidar de sua existência?”
“Mas só isso?”
“E você acha pouco? E o Velho Testamento, o que acha que é? Um suplemento esportivo? E como acha que Moisés conduziu os hebreus para fora do Egito? Sapateando e gritando oba? E pode me acreditar: é preciso mais do que um alisador de cabelo para domar as ondas encapeladas do Mar Vermelho e reparti-las ao meio. É preciso poder!”
“Quer dizer que o Homem é durão, hem?”
“Duríssimo. Mais do que você pensa.”
“E como sabe disso tudo?”
“Porque nós somos os eleitos. Cuida de nós como de Seus filhos e, aliás, este é um assunto que algum dia ainda vou discutir com Ele.”
“O que você paga a Ele para ser um dos eleitos?”
“Não posso responder.”
E foi isso aí. Os judeus estavam todos no esquema. Sabem, aquela velha jogada de pagar proteção. Toma lá, dá cá. E, pelo que o Rabino falava, Ele tomava mais do que dava. Peguei um táxi e fui ao Danny, um salão de bilhares na 10.a Avenida. O gerente era um sujeitinho raquítico e ligeiramente morrinha.
“Chicago Phil está por aqui?” – perguntei.
“Quem está querendo saber?”
Agarrei-o pelas lapelas, no que devo ter também agarrado alguma pele.
“O que você perguntou, seu merda?”
“Está lá nos fundos”, ele respondeu, mudando subitamente de atitude.
Chicago Phil. Falsificador, assaltante de bancos, meliante tristemente célebre e ateu confesso.
“O Cara não existe, Kaiser. O resto e conversa fiada. Cascata pura. Essa história de Chefão e farol. Na realidade, é uma quadrilha inteira que age em Seu nome. A maior parte sicilianos. Internacional, sacou? Mas sem essa de dizer que um deles é O Cara. Só se for o Papa,”
“Gostaria de talar com o Papa”, arrisquei.
“Posso ver isso pra você”, respondeu, me dando uma piscadela.
“O nome Claire Rosensweig significa alguma coisa pra você?”
“Não.”“E Heather Butkiss?”
“Butkiss? Hei, claro! É aquela oxigenada que estuda metafísica.”
“Metafísica? Ela disse filosofia!”
“Estava mentindo. É professora de metafísica. Andou transando por uns tempos com um professor de filosofia.”
“Panteísta?”
“Não. Empiricista, se bem me lembro. Um reacionário. Rejeitou completamente Hegel ou qualquer outra metodologia dialética.”
“Um daqueles, não é?”
“Isso mesmo. Antigamente, tocava bateria num trio de jazz. Depois se viciou em Positivismo Lógico. Quando isso também mixou, tentou Pragmatismo. A última notícia que ouvi dele foi a de que tinha roubado uma fortuna para fazer um curso de Schopenhauer na Universidade de Colúmbia. A quadrilha anda atrás dele para pegar suas apostilas e vendê-las por bom preço.”
“Obrigado, Phil.”
“Vá por mim, Kaiser. O Cara não existe. Branco total. Eu não passaria metade dos cheques sem fundo ou engrupiria os outros, como faço, se tivesse a menor sensação da autenticidade do Ser, O universo é estritamente fenomenológico. Nada é eterno. Tudo é sem sentido.”
“Quem ganhou o 5° páreo?”
“Santa Baby.”
Tomei uma cerveja numa birosca chamada O’Rourke’s e tentei juntar as pontas, mas nada ligava com nada. Sócrates tinha se suicidado – pelo menos, era o que corria pelas bocas. Cristo fora assassinado. Nietzsche pirara de vez. Se o Cara realmente existisse, não queria que ninguém tivesse certeza. E por que Claire Rosensweig teria mentido? Será que Descartes estava certo? O universo era mesmo dualístico? Ou a razão estaria com Kant, que condicionou a existência de Deus a certos padrões morais?
Aquela noite fui jantar com Claire. Dez minutos depois de pagar a conta, já estávamos na horizontal e vocês podem pensar o que quiserem, desde que se trate de Pensamento Ocidental. Ela teria ganho medalhas de ouro em várias provas olímpicas, inclusive salto com vara e 100 metros de peito. Em seguida, deitou-se no travesseiro ao meu lado, ocupando também o meu travesseiro com sua cabeleira.
Acendi um cigarro e, enquanto olhava para o teto, perguntei:
“Claire, e se Kierkegaard estivesse certo?”
“Sobre o quê?”
“Sobre o conhecimento, o verdadeiro conhecimento. E se dependesse da nossa fé?”
“Isso é absurdo.”
“Não seja tão racional.”
“Não estou sendo racional, Kaiser.” Ela também acendeu um cigarro. “Não me venha com esse papo ontológico. Pelo menos agora. Não estou com saco.”
Ela estava perturbada. Quando me inclinei para beijá-la, o telefone tocou. Ela atendeu.
“É pra você.”
A voz do outro lado era a do Sargento Reed, da Homicídios.
“Continua procurando Deus?”
“Continuo.”
“O tal Onipresente, Onisciente e Onipotente? Criador de Todas as Coisas e
tal e coisa?”
“Ele mesmo.”
“Alguém com essa descrição pintou no necrotério. Venha dar uma olhada.”
Fui correndo. Quando cheguei lá, não tive dúvidas: era Ele. E, pelo Seu aspecto, tinha sido um trabalho profissional. Bati um rápido papo com o tira de plantão.
“Já estava morto quando O trouxeram”, ele disse.
“Onde O encontraram?”
“Num armazém do subúrbio.”
“Alguma pista?”
“Trabalho de um existencialista. Isso é óbvio.”
“Como sabem?”
“Sem método, aleatório, como se não seguisse nenhum sistema. Puro
impulso.”
“Um impulso irresistível?”
“É isso aí. Logo, você é um dos suspeitos, Kaiser.”
“Eu??? Porquê?”
“Todo mundo sabe como você se sentiu sobre Ele.”
“Está certo, mas isso não quer dizer que eu O tenha matado.”
“Por enquanto não, mas é um dos suspeitos.”
Lá fora, na rua, respirei fundo e tentei clarear a cabeça. Tomei um táxi para Newark e, lá chegando, caminhei mais um quarteirão e entrei num restaurante italiano chamado Giordino’s. Claro, numa mesa dos fundos, lá estava Sua Santidade.
Era o Papa, sem dúvida. Sentado entre dois caras que eu já tinha visto numa lista de Mais Procurados. Ele mal levantou os olhos de seufettucine. Apenas disse:
“Sente-se.” Estendeu-me o anel. Abri meu melhor sorriso, mas não o beijei. Ele ficou desapontado e eu achei ótimo. 1 a 0 para mim.
“Esta servido de fettucine?”
“Obrigado, Santidade. Mande brasa.”
“Não quer nada? Nem salada?”
“Acabei de comer.”
“Como quiser, mas depois não se queixe. O tempero aqui é ótimo. Ao contrario do Vaticano, onde não conseguem fazer nada comível.”
“Pretendo ir direto ao assunto, Pontífice. Estou à procura de Deus.”
“Pois veio à pessoa certa.”
“Quer dizer que Ele existe?”
Os três riram muito. O cara ao meu lado disse:
“Que gracinha! O rapaz quer saber se Ele existe!”
Procurei uma posição mais confortável na cadeira e depositei todo o peso do meu pé sobre seu dedo mindinho.
“Desculpe”. Mas notei que ele tinha ficado uma onça. O Papa continuou:
“Claro que existe, Lupowitz. Mas eu sou o único que se comunica com Ele. Sou o Seu porta-voz.”
“Por que você, meu chapa?”
“Porque só eu uso essa túnica vermelha.”
“Esse roupão aí?”
“Não zombe. Toda a manhã, quando me levanto, visto esta túnica e penso comigo: Estão falando com Ele! O hábito faz o monge. Pense bem: se eu andasse
por aí, de jeans e rabo-de-cavalo, acabaria sendo preso por vadiagem.”
“Quer dizer que é tudo cascata. Não existe Deus.”
“Não sei. Mas que diferença faz?”
“Você nunca pensou que a lavanderia podia atrasar a entrega da sua túnica, tornando-o igualzinho a nos?”
“Uso sempre o serviço urgente. Vale a pena, só pra garantir.”
“Claire Rosensweig quer dizer alguma coisa?”
“Claro. Trabalha no Departamento de Ciências de uma faculdade dessas
por aí.”
“Ciências, você disse? Obrigado!”
“Obrigado por quê?”
“Pela resposta, Pontífice.”
Peguei o primeiro táxi (o qual foi o quarto ou o quinto), e me mandei. No caminho parei em meu escritório e chequei algumas coisas. Enquanto dirigia para o apartamento de Claire, juntei as peças do quebra-cabeça e, pela primeira vez, elas se ajustaram, quando Claire abriu a porta, usava um peignoir diáfano e parecia grilada.
“Deus morreu! A polícia esteve aqui. Estão te procurando. Acham que o criminoso foi um existencialista,”
“Nada disso, meu bem. Foi você.”
“Corta essa, rapaz.”
“Foi você quem o matou.”
“Que história é essa?”
“Você mesma. Nem Heather Butkiss nem Claire Rosensweig, massimplesmente Dra. Ellen Shepherd.”
“Como descobriu meu nome?”
“Professora de física na Universidade de Bryn Mawr. A mais jovem catedrática de todos os tempos por lá. Nas férias deste ano ligou-se a um baterista de jazz, viciado em filosofia. Ele era casado, mas isso não a impediu. Passou com ele uma ou duas noites e achou que estava apaixonada. Mas não deu certo porque Alguém se interpôs entre vocês: Deus. Sacou, meu bem? Ele acreditava no Cara, mas você, com a sua mente estritamente científica, precisava ter certeza.”
“Não é nada disso, Kaiser. Eu juro!”
“Assim você fingiu estudar filosofia porque isto lhe daria uma chance para eliminar certos obstáculos. Livrou-se de Sócrates com certa facilidade, mais aí Descartes entrou em cena e você serviu-se de Spinoza para ver-se livre de Descartes. Mas quando Kant apareceu, você descobriu que tinha de livrar-se dele também.”
“Você não sabe o que está dizendo.”
“Entregou Leibnitz às baratas, mas isso não bastava, porque você sabia que se alguém acreditasse em Pascal você estaria perdida, e assim tinha de livrar-se dele também. Mas foi aí que você cometeu um erro, porque confiou em Martin Buber. E o erro foi o de que ele acreditava em Deus. Portanto, você mesma teve de matar Deus.”
“Kaiser, você esta louco!”
“Não, meu bem. Você se fingiu de panteísta e isto lhe deu acesso a Ele – se Ele existisse, como existe. Foi com você à festa de Shelby e, quando Jason estava distraído, você O matou.”
“Quem são Shelby e Jason?”
“E que diferença faz? A vida é absurda assim mesmo.”
Ela começou a tremer.
“Kaiser, você não vai me entregar, vai?”
“Claro que vou, meu bem. Quando Deus é mandado para o pijama-demadeira, alguém tem de pagar a conta.”
“Oh, Kaiser, vamos fugir juntos. Só nós dois! Vamos esquecer essa história de filosofia e nos dedicarmos, quem sabe, à semântica!”
“Nada feito, meu bem. Já está decidido.”
Ela debulhou-se em lágrimas enquanto descia as alças de seu peignoire, num instante, eu estava diante de uma Vênus nua cujo corpo parecia dizer: Pegue-me -Sou toda sua. Uma Vênus cuja mão direita me fazia cafuné nos cabelos, enquanto sua mão esquerda me apontava uma .45 na nuca. Desviei-me com um sopetão e esvaziei o meu .38 em seu lindo corpo antes que ela puxasse o gatilho. Deixou cair a arma e fez uma cara de quem não estava acreditando no que acabara de acontecer.
“Como foi capaz de fazer isso, Kaiser?”
Ela estava morrendo depressa, mas ainda tive tempo de dar-lhe o golpe de misericórdia.
“A manifestação do universo como uma idéia complexa em si mesma, em oposição a estar no interior ou no exterior do próprio e verdadeiro Ser, é, inerentemente, um nada conceituai ou um Nada em relação a qualquer forma abstrata de existência, de existir ou de ter existido perpetuamente, sem estar sujeita às leis de fisicalidade, de movimento ou de idéias relativas à antimatéria ou à falta de um Ser objetivo ou a um Nada subjetivo.”
Foi uma definição sutil, mas acho que ela entendeu muito bem antes de morrer.

ALLEN, Woody. Cuca Fundida. Tradutor: Ruy Castro. Editora L&PM Pocket, 2008.

ATENÇÃO >> no You Tube tem um vídeo interessante desse conto http://www.youtube.com/watch?v=qktk4csioQw

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"Cuca fundida, lançado originalmente em 1971, é o primeiro dos três livros com textos curtos, geniais e impagáveis daquele que é talvez o maior cineasta norte-americano (os outros dois livros são Sem plumas Que loucura!, também disponíveis na Coleção L&PM Pocket). São dezessete textos que mesclam humor judaico, psicanálise, culpa, sexo e outros temperos e neuroses da vida moderna – tudo isso em um estilo inteligente, rápido e cheio da comicidade trágica presente nos filmes do autor.
Um livro para fãs de Woody Allen e para fãs do riso inteligente."



Crédito : Blog PHILOSOPHIA : PENSANDO A VIDA E CUCA FUNDIDA

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